Ao ouvir estas duas palavras – transformações sistêmicas – em princípio, você pode não entender a ligação delas com a Comunicação Não-Violenta (CNV). Isso é compreensível. É muito recorrente a CNV ser apresentada como uma abordagem que nos apoia em nossas relações intra e interpessoais, ou seja, em nossos diálogos internos e em nossas relações com as pessoas que nos são próximas. Então, se foi dessa forma que a CNV chegou até você, como disse acima, é totalmente compreensível não associar questões sociais a ela.
Porém, o que eu gostaria de destacar aqui é justamente a dimensão sistêmica da CNV; dimensão essa que nos convoca a ir além de nossas questões pessoais e a nos dar conta que estamos inseridas(os) em sistemas coletivos violentos que constituem nossa sociedade. Resumidamente, podemos dizer que a CNV opera em três níveis ou dimensões: intrapessoal, interrelacional e sistêmico. Níveis que se entrelaçam e formatam as tramas de nosso cotidiano. Para além de mim (de meus diálogos internos), das relações próximas que estabeleço, há que se considerar que estamos inseridas(os) em sistemas sociais maiores (de gênero, raça, classe, etnias, econômico, orientação sexual e tantos mais) que, em última análise, são fonte das (micro)violências que praticamos e somos alvo no nosso dia a dia. Portanto, praticar a CNV significa também questionar nossa estrutura social violenta e promover, sistemicamente, transformações significativas.
Para melhor compreensão, resgatar um pouco da origem da CNV pode ser interessante. Como afirmou o próprio Marshall Rosenberg, o conteúdo que ele nos apresentou já existia há séculos. Seu trabalho notório foi o de sistematizar este conteúdo e difundi-lo em várias partes do mundo. Um conteúdo fortemente inspirado em sua experiência de reflexão e trabalho com Carl Rogers – cofundador das abordagens humanistas da Psicologia e nas práticas não-violentas de Gandhi e Luther King, dentre outros líderes que, pela firmeza e determinação de sua escolha pela não-violência como fundamento e estratégia de luta, conseguiram conduzir seus povos a libertação de regimes políticos autoritários, opressores e desumanos. Marshall é tributário desta história.
Como um expectador interessado e atento, ele focou sua atenção nestes processos que são ao, mesmo tempo, grandiosos e particulares por promoverem a transformação de mentalidades, de comportamento, de concepções de vida, de maneiras de ver o mundo e toda a complexidade que o constitui e, dentro de tudo isso, Marshall se concentrou no campo da linguagem. Ele se dedicou a investigar o papel da linguagem e do uso que fazemos das palavras para nos conectar ou não com nossa humanidade; para reproduzirmos ou não violências diversas. Como fundamento central, a CNV propõe nossa (re)conexão autêntica conosco e com o outro, e a cocriação compassiva de realidades que atendam às necessidades de todas as pessoas envolvidas.
Entretanto, para que isso aconteça de maneira real há que se reconhecer que vivemos em sociedades marcadamente desiguais em diversos aspectos e, no limite, muitas violências que praticamos em nosso cotidiano estão ancoradas nas hierarquias que utilizamos para classificar pessoas e situações. Ainda que façamos isso de maneira irrefletida ou involuntária, precisamos admitir que fazemos. E é pela existência deste cenário – sistêmico, estrutural que envolve a todas(os) – que faz todo o sentido associar o termo “transformações sistêmicas” a CNV.
Praticar a Comunicação Não-Violenta pressupõe uma abertura sensível para questões que extrapolam nossas vivências individuais ou nosso contexto mais imediato. Por mais que tenhamos limitado nossas experiências e contatos ao que já se convencionou chamar de nossa “bolha de relacionamentos”, não podemos esquecer que fazemos parte de uma sociedade que nos precedeu, que tem história, que tem mecanismos e estruturas de organização, que tem disputa de narrativas e de poderes e que tudo isso se dá simultaneamente em nível global, local e subjetivo. Somos todas(os) constituídas(os) e afetadas(os) por esse conjunto de fatos, pensamentos e ações.
Tomar consciência desta complexidade é muito importante. Se posicionar diante disso, é mais importante ainda. Somos parte. Contribuímos por ação ou omissão nos pactos de violência secularmente estabelecidos. Portanto, a CNV se apresenta como poderoso instrumento de transformação social, pois, como o próprio Marshall alertou, “Se uso a Comunicação Não-Violenta (CNV) para libertar as pessoas de depressão, para conviverem melhor com suas famílias, mas simultaneamente não lhes ensino como rapidamente transformar os sistemas sociais no mundo, então me torno parte do problema. Essencialmente as estarei pacificando, fazendo-lhes mais felizes em viver nos sistemas como atualmente são, e assim utilizando a CNV como um narcótico.”
Adotar a CNV como referência para as relações é nos permitir ou nos desafiar a uma outra forma de interação: mais livre, mais genuína, eficiente, consciente, afetiva e que conecta. Um tipo de relação que reconhece que cada um(a) é parte do todo. E que por isso mesmo podemos, juntas(os) e em conexão, criar um mundo melhor.
Integrar a CNV em nossa vida pressupõe integrá-la em sua completude: com as subversões subjetivas, relacionais e sistêmicas para as quais ela nos convida; e, a partir daí, experimentar o fluxo de vida real e consistente que poderemos usufruir.