Armadilhas do Diálogo

O pessoal do “Porta dos fundos” produziu uma série de vídeos chamada “A polêmica da semana”.

 

Os vídeos dessa série se apropriam de um formato que tem sido muito comum em programas de TV e também muito difundido na internet, ainda que, nesta, talvez de uma maneira mais difusa.

 

Lançando mão da caricatura e do exagero, típicos das cenas de humor, os roteiros encenados propõem uma crítica que considero urgente: que tipo de diálogo temos estabelecido? A forma sustenta a qualidade das trocas? A que determinados “diálogos” servem?

 

Defendo o diálogo como estratégia primordial para o trato de situações que envolvam conflitos, desconhecimentos, desigualdades e todas as formas de violência. Acredito que o diálogo é um ato revolucionário, uma forma de resistência e, portanto, político em todas as dimensões em que ele acontece.

 

Ou como nos ensina Paulo Freire: “O diálogo é o encontro entre humanos, mediatizados pelo mundo para designá-lo. Se ao dizer suas palavras, humanos transformam o mundo, o diálogo impõe-se como o caminho pelo qual encontraremos seu significado. O diálogo é, pois, uma necessidade existencial”.

 

Mas voltando aos vídeos… O que vemos ali nos leva a nos perguntar: que diálogo é esse? De onde vem o incômodo ao assisti-lo?

 

Ao praticarmos a Comunicação Não-Violenta (CNV) seguimos um caminho que visa melhores conexões. Um encontro em que, para além das camadas de violências e alienações a que fomos condicionadas(os), possa existir espaços de reconhecimentos nossos, enquanto humanos plenos e, a partir daí, podermos inventar realidades possíveis para nós. Todas(os) nós.

 

Para isso acontecer, precisamos ter olhos críticos para pseudopropostas de “diálogos” que nada mais são que atualizações de modos violentos de existir.

 

Quando fatos históricos, dados estatísticos e teorizações científicas são ignoradas, subvertidas e confrontadas com “opiniões” e visões muito particulares de mundo; quando discursos de ódio são considerados simplesmente como “o outro lado da questão”, há algo acontecendo que precisamos observar com atenção.

 

O argumento que sustenta essa prática pode até ser lógico — se um pode falar a favor, o outro pode falar contra. Entretanto, isso é apenas puro exercício da forma argumentativa. Algo falacioso e antiético.

 

O que está sendo apresentado como “diálogo” nessas situações, no geral, não passa de uma colagem malfeita de falas que escondem, intencionalmente, distorções e esvaziamentos de termo, conceitos e situações.

 

E esse tipo de “interação” não reconhece ou pouco se importa com os contextos psicológico, econômico, político, religioso, histórico, ideológico, jurídico ou de qualquer outra esfera que constitua o raciocínio.

 

Trata-se de uma falsa simetria entre opostos em nome de uma horizontalidade ou democracia de fachada que cria situações pseudodialógicas para, a partir delas, ratificar consensos tendenciosos.

 

Prática perigosa e absolutamente danosa para pessoas e grupos que já experimentam em suas trajetórias, vivências de subalternização e apagamentos. Promover o encontro, promover o diálogo, nestas bases é reforçar padrões de violência camuflados por discursos emancipatórios.

 

Que possamos, sim, nos encontrar para além das ideias de certo e errado no campo da inteireza humana, como convida Rumi (Poeta Sufi).

 

Mas que não percamos de vista que ainda neste campo existirão horizontes éticos, parâmetros civilizatórios, histórias sociopolíticas e responsabilidades compartilhadas se, de fato, almejamos uma existência plural e livre de violências.

 

Nesses termos, serão bem-vindos todos os diálogos necessários para sustentação dessa vida desejada.

 

Fora desse campo, atenção!

 

Todo o cuidado é pouco para evitarmos armadilhas violentas disfarçadas ações de equidade.