Branquitude e (Im)possibilidades: Considerações Sobre uma Consciência Racial Crítica

Quem já ouvia a voz das montanhas, dos rios e das florestas não precisa de uma teoria sobre isso: toda teoria é um esforço de explicar para cabeças-duras a realidade que eles não enxergam (KRENAK, 2020, p. 20)

 

Negros e indígenas são, há muito tempo, observados, investigados, dissecados, analisados e julgados pelos brancos que, convenientemente, mantiveram-se “cegos” sobre si mesmos e seus privilégios.

 

Mas, é preciso tensionar o debate denunciando a simbiótica relação entre o racismo e a branquitude – tanto a que está há muito tempo “enxergando” o que produz e segue ativa para manter as desigualdades quanto a que permanece convenientemente “cega”, utilizando as falácias da democracia racial, do “somos todos iguais” e do “dia da consciência humana” como muletas. Assim como Abdias do Nascimento, no livro ‘’O Quilombismo: documentos de uma militância Pan-Africanista’’ (2019, p. 104): “Não aceito o escapismo da ‘humanidade sem cor’, que simplesmente nos conduz ao endosso de nossa alienação cultural e racial, tão persistentemente patrocinada e advogada por aquelas ideias e aqueles ideais do supremacismo eurocentrista”.

 

De acordo com pesquisas no âmbito dos Estudos Críticos da Branquitude (Twine e Steinbugler, 2006; Schucman, 2014 e Corossacz, 2014), a falta de consciência ou consciência parcial sobre a racialidade, bem como sobre os significados da identidade branca na estrutura social racializada, corroboram com o errôneo entendimento de que as discussões sobre as relações étnico-raciais dizem respeito somente às pessoas negras e indígenas.

 

Mesmo assim, a apropriação de uma consciência racial parcial e ações antirracistas para mitigar o sentimento de culpa não tornam brancos porta-vozes ou juízes no debate racial, acessando o lugar de privilégio e poder para negligenciar denúncias, recorrendo ao pacto narcísico para defender os interesses do próprio grupo racial (Bento, 2002) e se refugiando na fragilidade branca no intuito de se eximir do lugar de responsável pela estrutura racista (Diangelo, 2018) – esta postura é contraditória e opressora!

 

Na realidade, conforme ressalta bell hooks, no livro ‘’Olhares Negros: raça e representação’’ (2019):

 

Entendendo como o racismo funciona, ele pode ver a forma como a branquitude age para aterrorizar sem ver a si mesmo como mau, ou ver todos os brancos como maus e todos os negros como bons. Repudiar as dicotomias entre “nós e eles” não significa que não deveríamos falar das maneiras em que ver o mundo do ponto de vista da “branquitude” pode, de fato, distorcer a percepção, impedir o entendimento do modo como o racismo funciona no mundo como um todo e nas nossas interações íntimas (HOOKS, 2019, p. 314).

 

Além disso, esquivar-se do reconhecimento sobre o lugar de privilégio e poder que ocupa compromete iniciativas que visam mudanças na estrutura social racializada, pois fomenta práticas e relações que submetem pessoas não brancas às regras de um jogo que impõe o que é “aceitável”, “válido” e “respeitável”. Essas estratégias da branquitude, mesmo em espaços que visam a inclusão, também causam sensações de terror (hooks, 2019). A inclusão de pessoas negras e indígenas em espaços predominantemente ocupados por pessoas brancas também gera a exclusão, pois é preciso se apropriar dos símbolos e códigos de relações e comportamentos forjados sob a ótica branca do que é aceitável, apropriado e ético para, supostamente, serem incluídas no jogo.

 

Porém, o paradoxo é que cada ascensão de uma pessoa negra, que atenua a subalternidade imposta pelo racismo estrutural, é uma conquista, especialmente se for protagonizada por uma mulher – conforme anunciou Angela Davis, em 2017, na Bahia: “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras; muda-se a base do capitalismo”.

 

Desta forma, é essencial que as pessoas brancas estejam cientes dos impactos de suas práticas declaradas antirracistas, pois a busca das pessoas negras pela ascensão social não significa o desejo de serem assimiladas sob novos padrões de subjugação. Conforme aponta Eddo-Lodge, no livro ‘’Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça’’ (2019, p.55): “Eu não quero ser incluída. Em vez disso, quero questionar quem criou o padrão em primeiro lugar. Depois de uma vida inteira incorporando a diferença, não desejo ser igual. Quero desconstruir o poder estrutural de um sistema que me marcou como diferente. Não quero ser assimilada no status quo”.

 

Assim sendo, é preciso que as pessoas brancas declaradas não racistas assumam criticamente a responsabilidade de fazer parte de um sistema racista que as privilegiam e ajam, consciente e criticamente, no sentido de romper com regras de um jogo que as beneficiam.

 

Inspirada na obra ‘’Pedagogia do Oprimido’’, do educador Paulo Freire (1987), em que autor afirma que a situação opressora gera uma totalidade desumanizada e desumanizante na qual cabe aos que oprimem a responsabilidade de gerar de seu ser menos a busca do ser mais de todos, não vejo possibilidade de antirracismo entre as pessoas brancas sem a presença de uma consciência racial crítica sobre a branquitude e os significados sociais dessa identidade racial para sua existência nesse mundo enquanto ser menos. À medida que pessoas brancas declaradas não racistas se apropriam disso, aumentam as possibilidades de ser mais no mundo.

 

Perceber-se como responsável por algo que declara abominar pode gerar um processo difícil e que requer vigilância. Mas, se a opressão do racismo ainda é uma realidade para os povos indígenas e negros, por que a igualdade racial seria uma realidade difícil para os brancos, não é?

 

Este texto é uma adaptação das considerações finais da tese de doutorado Educação das Relações Étnico- Raciais: branquitude e educação das ciências (NASCIMENTO, 2020), defendida no Programa de Pós- Graduação em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT/UFSC) com apoio do CNPq.

 

 

Referências Bibliográficas

 

BENTO, M. A. S. Pactos Narcísicos no Racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de Doutorado (Instituto de Psicologia de São Paulo) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. (185p.).

 

COROSSACZ, V. R. Entre Cor e Classe: definições de branquitude entre homens brancos no Rio de Janeiro. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), [S.l.], v. 6, n. 13, p. 201-222, mar./jun. 2014. Disponível em: https://abpnrevista.org.br/site/article/view/159/156. Acesso em: 24 jul. 2023.

 

DiANGELO, R. Fragilidade Branca. Tradução: Anelise Angeli De Carli. Revista EcoPós, v. 21, n. 3, p. 35-57, 2018. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/22528/12626. Acesso em: 03 mar. 2020.

 

EDDO-LODGE, R. Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça. Tradução: Elisa Elwine. Belo Horizonte: Letramento, 2019.

 

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

 

HOOKS, B. Olhares Negros: raça e representação. Tradução: Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019.

 

KRENAK, A. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

 

NASCIMENTO, A. O Quilombismo: documentos de uma militância Pan- Africanista. 3. ed. São Paulo: Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019.

 

NASCIMENTO, C.C. Educação das Relações Étnico-Raciais: branquitude e educação das ciências. Tese de Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020. (147p.).

 

SCHUCMAN, L. V. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. São Paulo: Annablume, 2014.

 

TWINE, F. W.; STEINBUGLER, A. The gap between whites and whiteness: Interracial Intimacy and Racial Literacy. Du Bois Review Social Science Research on Race, v. 3, n. 2, p. 341-363, set. 2006. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/231775543_The_gap_between_whites_and_whiteness_Interracial_Intimacy_and_Racial_Literacy. Acesso em: 20 fev. 2020.