Penso, Logo Existo?

O famoso filósofo e matemático do século XVI, René Descartes, é comumente conhecido pela famosa frase “Penso, logo existo”. Essa frase representa o pensamento do sistema cartesiano, que deu origem à Filosofia Moderna, no qual o pensar e refletir sobre o próprio intelecto é o centro da existência do ser humano. É pelo pensar que nos diferenciamos de todos os outros seres vivos e esse valor pelo raciocínio é percebido culturalmente até os dias de hoje, desde os sistemas familiares até dentro de organizações, vinculado às figuras de poder. Mas me pergunto, onde entra a emoção nessa história?

 

António Damásio, neurologista e filósofo, trouxe uma provocação para a ciência atual sobre os estudos das emoções dentro da neurociência e como isso afetava o corpo humano e as relações interpessoais. Segundo ele (2001), o que caracteriza o ser humano é sua inteligência sofisticada e o que nos distingue das outras espécies é a nossa linguagem. O que nos permitiu chegar aonde chegamos como humanidade foi causado pelos nossos sentimentos.

 

Em sua análise, Damásio (2001) diferencia as emoções de sentimentos. “Uma emoção, seja felicidade ou tristeza, constrangimento ou orgulho, é um padrão coleção de respostas químicas e neurais que é produzido pelo cérebro quando detecta a presença de um estímulo emocionalmente competente – um objeto ou situação, por exemplo.” Ou seja, é a forma como processamos a um estímulo, podendo ser consciente ou inconsciente, que leva as respostas automáticas, como reações do cérebro baseadas em repertórios de ação de cada indivíduo. As emoções são comuns a todas as pessoas, no qual não temos nenhuma forma de controle e que percebemos no corpo como estados emocionais e como comportamentos de respostas mediante a um conflito e situação de estresse, como o congelamento, luta ou fuga. São as emoções que nos permitem lidar de maneira eficiente com as situações e objetos quando nos sentimos em perigo.

 

Já os sentimentos são “representações mentais das mudanças fisiológicas que caracterizam emoções”. Por ser um fenômeno cognitivo, passivo de subjetividade como outros aspectos da mente, os sentimentos amplificam o impacto de uma determinada situação, melhoram o aprendizado e aumentam a probabilidade de antecipação de situações similares. Em outras palavras, os sentimentos permitem uma certa medida de controle premeditado de emoções, que são, por definição, automatizadas. Com essa perspectiva, se leva a concluir que o grande filósofo cartesiano, Descartes, cometeu um equívoco ao dizer que é somente o pensamento que nos torna seres humanos. Na verdade, o que nos caracteriza como seres humanos são nossos sentimentos, que nos permitem, por meio das nossas emoções, lidar com sucesso e com as situações de perigo. Assim, por meio dos sentimentos, aprender com os nossos padrões e mudar ações quando elas nos levam para uma direção que não faz mais sentido em nossas vidas, individuais ou coletivas.

 

O Sentir da Comunicação Não Violenta

 

O PhD psicólogo estadunidense Marshall Rosenberg (2006) compilou diversos saberes científicos e ancestrais nas áreas da linguagem, comunicação, consciência, psicologia e habilidades, e trouxe ao mundo a Comunicação Não Violenta (CNV). Segundo ele, é a linguagem da vida que nos permite honrar a vida dentro de nós, entre nós e ao nosso redor, no qual mostra a nossa interdependência. É uma forma de exercitarmos o nosso poder por meio de fala honesta e escuta empática e curiosa, mesmo quando enfrentamos um conflito. É uma habilidade de responder a falas carregadas de julgamentos, críticas e diagnósticos e transformá-las em entendimentos de pedidos para atender necessidades básicas comuns a todos nós.

 

CNV está longe de ser uma linguagem passiva e permissiva. E sim, uma possibilidade de investigação conjunta de entendimento e acordos que levem a ações concretas para um convívio mais harmônico entre as pessoas e grupos. Muitas vezes, esses entendimentos e acordos são parciais, com uma satisfação momentânea, para conseguirmos caminhar para um futuro mais pacífico e respeitoso e não o ideal para cada indivíduo. Viver em paz dá muito trabalho, mas viver em guerra gera muito mais dor e destruição. Por isso que essa linguagem é usada em diversas áreas de justiça, mediação e negociação, pois abre um campo para a colaboração e ganho mútuo.

 

Um dos aspectos que são considerados na CNV são os sentimentos. Depois da observação de fatos de uma situação, o que se percebe são as emoções e sentimentos que surgem na pessoa que observa e, também, na outra pessoa (ou pessoas) envolvidas. O aumento do vocabulário emocional é imprescindível para uma comunicação eficiente e compassiva. Culturalmente, as palavras que usamos para expressar emoções e sentimentos são carregadas de crítica e julgamentos, como, por exemplo, “me sinto fracassada no trabalho” ou “me sinto incompreendida pelo meu chefe (família, parceiro(a) etc.)”. Esses exemplos mostram como a palavra usada após “sinto” está com uma interpretação (avaliação) de como me percebo ou como acho que os outros me percebem. Não existe uma emoção concreta aqui.

 

Em 2017, pesquisadores do Laboratório de Interação Social da Universidade de Berkeley identificaram 27 emoções, como espanto, anseio, calma, raiva, medo, tristeza, confusão, satisfação, tédio, interesse, adoração e alívio. Quando queremos expressar nossas emoções de fato, precisamos nos conectar com essa sensação física no corpo devido a emoção e a necessidade básica que queremos atender naquele momento. Então, ao invés de dizer “me sinto fracassada no trabalho”, posso me apropriar do que sinto, por ser algo natural, e uma das possibilidades de fala pode ser “me sinto triste com a apresentação dos resultados desse trimestre porque não consegui encontrar palavras para expressar todos os desafios que enfrentamos”. Aqui fica claro que existe uma necessidade por contribuição e reconhecimento pelos esforços em um ano desafiador. Assim, fica mais fácil de oferecer auto empatia e empatia para os outros mesmo em uma situação que é desagradável e indesejada.

 

Quando compreendermos o que precisamos, fundamentalmente, o que é chamado de necessidades na CNV e de interesse dentro da teoria da mediação de conflitos, fica mais fácil diferenciar essas necessidades da forma como queremos atender essas necessidades (estratégias ou posições). E, para isso, os sentimentos vêm como um GPS para nos ajudar a identificar o que está por detrás de todas as emoções e sentimentos para enxergarmos o que realmente precisamos naquele momento. Um dos obstáculos que impedem a escuta desses sentimentos é responsabilizar o outro pelo que se sente, trazendo como forma de crítica ou diagnóstico. A mesma situação feita por pessoas diferentes pode nos causar dor ou alívio. Se uma pessoa que você ama cruzar com você na rua e não acenar, pode-se sentir espanto ou até incômodo, mas se for uma pessoa no qual você deve algum dinheiro ou teve uma discussão sobre política recentemente, ficará aliviado(a) ou alegre com essa situação. Somos responsáveis pelo que sentimos e como escolhemos nos comunicar.

 

As emoções e sentimentos abriram um campo de estudo nas ciências, que reverbera profundamente no entendimento das nossas relações interpessoais e da integração da nossa complexidade humana. Conflito e atrito fazem parte das dinâmicas relacionais e cabe a nós, dotados de uma inteligência sofisticada, usarmos a linguagem como uma ferramenta de destruição ou construção. É um convite para transpor a lógica cartesiana que baseou todas as nossas estruturas sociais, nos permitindo sentir para poder pensar e agir. Agir de forma conectada e honrando essa vida que revela a nossa coexistência.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Damásio, António 2001. Fundamental feelings. Macmillan Magazines.

 

Rosenberg, Marshall 2006. Comunicação não-violenta: Técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. Editora Ágora.

 

Universidade Berkeley, 2017. Laboratório de Interação Social. https://news.berkeley.edu/2017/09/06/27-emotions/