Sobre a Derrubada de Anúncios de Vagas com Ações Afirmativas

Fiquei muito decepcionado (e negativamente surpreso) com a posição do LinkedIn de derrubar anúncios de emprego com ações afirmativas (vagas só para negros, ou índios, ou mulheres, e por aí vai).

 

Eu consigo entender que as pessoas que têm mais privilégios (como eu) tenham muita dificuldade em captar a importância das ações afirmativas, e numa posição rasa, sem nunca terem parado para se aprofundar, permaneçam cegas e se blindando numa suposta imparcialidade de “oportunidades iguais”, ou “o que vale é a competência” e assim por diante.

 

Agora, essa rede social se coloca como referência em recrutamento e seleção e dá cursos (e cobra por isso) sobre diversidade, inclusão, e até mesmo, se não me engano, antirracismo. Ao impedir ações afirmativas, ela acaba legitimando o que eu considero uma visão míope (e muitas vezes mal-intencionada e preconceituosa mesmo) dos mais privilegiados.

 

O tema não é simples de se comentar em um post. Existe vasta bibliografia sobre o assunto, e uma redução desse debate a um pequeno texto acaba ficando superficial. Mas acho que é pior ainda se calar, e se você chegou até aqui e ainda quer continuar lendo (estando incomodado ou não), permita-me mais um pouco do seu tempo.

 

Pense em uma pessoa que é CEO de uma empresa. Imagine as características físicas dessa pessoa, como ela é, se veste, onde nasceu e mora, onde estudou etc. Você muito provavelmente pensou em um homem branco que se apresenta como hetero, que estudou em uma boa escola e mora em uma zona rica de uma grande metrópole. Ao menos você deve concordar comigo que normalmente esse cargo é associado a um homem com um jeitão, gestual, atitude, escolaridade, forma de se vestir e expressar, muito parecidos comigo.

 

Pense então em uma pessoa que faz trabalhos domésticos (por exemplo, faxina, cozinha, passa roupa etc.) na casa ou apartamento de outras pessoas. Imagine as características físicas dessa pessoa, como ela é, se veste, nasceu, mora e onde estudou. Você provavelmente imaginou uma mulher negra da periferia de uma grande metrópole.

 

A chance dos filhos da primeira pessoa serem candidatos com mais chances de serem escolhidos numa vaga “neutra”, “imparcial”, focada somente no “mérito” ou na “competência” é infinitamente maior do que a dos filhos da segunda pessoa. Claro, há exceções de quem “chegou lá”, isso não significa que as chances de uma pessoa não sejam infinitamente maiores do que a da outra. E o ciclo se perpetua perenemente. Isso é uma das manifestações do racismo estrutural. A estrutura da sociedade favorece uns poucos e desfavorece a maioria.

 

Muitas vezes, as pessoas escolhidas têm mesmo mais desenvolvidas as competências esperadas para a vaga. Só que nem sempre. Mas só por se parecer mais com quem normalmente as têm, faz com que quem seleciona os candidatos tenha, muitas vezes de forma inconsciente, uma predileção em escolher pessoas que se parecem, na maioria das vezes, comigo.

 

Perceba que eu ter nascido numa família de classe média alta, estudado num bom colégio, ter tempo de me dedicar a desenvolver as competências esperadas no mercado de trabalho, em grande parte, não é mérito nenhum meu. Foi sorte de ter nascido na família, no bairro e na cidade em que eu nasci. No máximo posso dizer que é mérito dos meus pais – e da minha irmã – que tiveram a preocupação de usar os privilégios que têm para me dar as oportunidades que eu tive de me desenvolver. Sou muito grato por isso.

 

Sim, eu estudei muito e sigo estudando. Eu sempre trabalhei muito, longas horas em dias de semana, feriados e finais de semana. Sinto que reconhecer que eu tenho privilégios que me deixam em posição mais favorável às remunerações dos trabalhos considerados de “mão de obra qualificada” em nada diminuiu o meu esforço diário ou desmerecem o que eu pude construir na minha carreira. Eu tenho orgulho e sentimento de merecimento pela minha trajetória.

 

Ao mesmo tempo, eu percebo que eu estou do lado favorecido da estrutura. E entendo que não fazer nada para mudá-la é ser conivente com um arranjo de sociedade que não dá igual oportunidade a todos. Vagas anunciadas como neutras vão sempre favorecer a pessoas como eu. Ou seja, não têm nada de neutro ou imparcial, muito pelo contrário, reforçam uma estrutura desigual.

 

As ações afirmativas são uma forma de tentar de fato dar as mesmas oportunidades a todos. Não se trata de contratar pessoas despreparadas para um determinado cargo. Se trata de ter certeza de que se inclui quem atende aos requisitos e que, pela forma como a sociedade está estruturada, acaba ficando de fora, mesmo tendo o preparo necessário.

 

Na medida que os filhos daquela pessoa 2 tiverem acesso à educação e a trabalhos de maior remuneração, a estrutura começa a se transformar, e aí sim a gente pode falar em igualdade de oportunidades. Isso leva tempo, e você pode não querer que isso aconteça, ainda que eu não concorde com você. Só não chame isso de imparcialidade ou igualdade de condições, porque não é.

 

Enfim, é um longo caminho de transformação. Obrigado por ler até aqui e boas reflexões.