Vi várias manifestações a favor e contra o programa de trainee do Magalu que abria vagas “somente para negros” e queria deixar minha opinião sobre o tema, baseado não somente na minha própria experiência, mas também em muitos dados que pesquisei no início do ano, por outros motivos.
Este texto é voltado para aqueles que se sentem incômodos com um programa assim ou são deliberadamente contra. Já deixo claro que sou a favor do programa e de ações afirmativas como essa. Ao mesmo tempo, entendo e empatizo com o incômodo. No meio deste ano, fui desconsiderado em um processo de contratação de serviços de consultoria, pois queriam dar oportunidade a consultores negros. Era um projeto sobre um assunto que eu domino e gosto, para uma empresa que eu admiro… e não permitiram sequer que eu apresentasse a minha proposta. É claro que isso me trouxe desconforto.
Só que pude lidar com esse desconforto de forma bem rápida. Para minha sorte, lá por abril/maio deste ano, antes desses temas terem voltado às primeiras páginas, eu escrevi um artigo acadêmico que, em um dos capítulos, falava justamente sobre ações afirmativas para reparações históricas. Ter feito essa pesquisa, ter entendido com maior embasamento o que é racismo estrutural, visto com dados e números que pobreza tem sim cor, me permitiram aprofundar a minha opinião sobre essas questões. Então, quando não me permitiram apresentar a minha proposta, percebi que era o universo me testando pra ver se eu tinha realmente interiorizado o aprendizado. Meu desconforto com a “contração de consultores negros” passou rapidinho e até felicitei a empresa pela iniciativa. Compartilho aqui então esse capítulo, com algumas pequenas alterações que visam que o texto faça sentido sem estar no meio dos outros capítulos.
Convido a todos que sentiram um desconforto com o programa do Magalu a ler o texto e refletir. Não precisam mudar de opinião, é claro. Mas ao menos tenham uma opinião mais embasada em dados, e não numa sensação de desconforto. Usem o desconforto como convite à reflexão, e não como estímulo à reação rápida de defesa. Depois de ter passado por esse exercício, hoje o que me incomoda é ver manifestações contra esse tipo de programa.
Estudei em um dos melhores colégios do Rio de Janeiro e lembro que tive apenas uma colega negra durante todos aqueles anos. Por ter crescido nesse ambiente, isso não me chamou a atenção, embora mais da metade da população brasileira se considere negra ou parda (IBGE 2020). Em 1994, entrei na Escola de Engenharia da UFRJ, e lá vi mais alunos negros, muitos deles de programas de intercâmbio com países africanos de língua portuguesa. Foi a primeira vez que tomei conhecimento de algum tipo de programa de cotas e isso me causou uma má impressão devido ao fraco desempenho daqueles alunos. Mudei de ideia sobre as cotas depois de me aprofundar mais nos assuntos que discuto neste artigo.
Era então 2019, e eu vi um post no Instagram de uma amiga minha recrutando pessoal para produções de filmes, deixando claro que a oportunidade era “Apenas para negrxs”. Lembro que fiquei desconfortável ao lê-lo. Eu me perguntei por que me sentia assim, se era uma forma correta de pedir currículos, ou se de alguma forma isso poderia ser considerado racismo. O desconforto que senti foi um bom alimento para reflexão, fazendo-me aprofundar mais sobre as ações afirmativas. Meu desconforto passou depois de procurar mais informação sobre o assunto e formar uma opinião mais embasada em conhecimento.
Neste artigo, discuto como as leis podem ter um impacto duplo na sociedade, dependendo de como são usadas. Por um lado, como em um processo homeostático, as leis criam ciclos de feedback para manter a situação constante, que pode ser um status quo opressor, causa raiz de conflito. Por outro lado, as leis podem incentivar a mudança, quando há uma decisão deliberada de transformar essa estrutura de poder. É como ajustar os parâmetros a um novo conjunto de valores: o processo homeostático da sociedade então, reforçado por leis, trabalhará para estabelecer o equilíbrio de acordo com esses novos valores. Para mostrar isso, explorei o caso da escravidão no Brasil colonial, suas consequências, e como as ações afirmativas, mais especificamente o sistema de cotas para negros nas universidades públicas, podem apoiar a transformação do racismo estrutural embutido na sociedade brasileira.
Sobre Costumes, Cultura, Valores e Leis
As leis vêm dos costumes, hábitos e valores das pessoas, ou seja, são o reflexo normativo da cultura. Essas normas estabelecem como a população sob seu poder deve se comportar (Kelsen 1941, 50). Lustosa (2001) afirma que a essência do direito é servir como instrumento de paz, harmonia e felicidade social. Bertanlaffy coloca a Constituição, a lei, o nível executivo e a jurisdição como ferramentas homeostáticas para garantir a sobrevivência e o bem-estar da comunidade (Dietrich 2018, 47-48).
Concordo com a importância das leis como formas de manter o equilíbrio da sociedade, embora diferente das leis da natureza – como a lei da gravidade, as leis dos povos dependem dos valores de uma população em um determinado momento, e como tal podem ter efeitos contra a paz e a harmonia, ou estar desatualizadas (Lustosa 2001). As leis também podem ser usadas para fortalecer um status quo opressor, reforçando os interesses de um grupo contra outro, o que também pode ser causa de conflito. Marx e Engels (1848, 17) já chamavam a atenção para como a centralização dos meios de produção e a concentração da propriedade em poucas mãos, levam à centralização política, que pode significar poder de fazer leis em favor dos poderosos. Isso foi excepcionalmente verdadeiro no caso do Brasil colonial e reforçou o desequilíbrio social ao longo do tempo.
A formação da desigualdade estrutural no Brasil
Almeida (2018, 42) explica que o racismo estrutural é um processo histórico vinculado à formação da sociedade. Portanto, farei um breve exame da formação social do Brasil, país que começou como colônia portuguesa no início do século XVI.
Para assegurar a posse das terras, Portugal decidiu ocupar o território através da exploração agrícola das terras (Furtado 1987, 5-8; Pereira e Santos 2018, 114-116). Naquela época, ter uma empresa agrícola longe da Europa era um empreendimento caro e desafiador. Para viabilizá-lo, a coroa portuguesa transferiu a gestão do território a proprietários privados, que passavam a ter o poder total sobre aquele pedaço de terra (Pereira e Santos 2018, 118); também utilizaram escravos africanos como força de trabalho, como meio de reduzir o custo de produção. Foi o início de uma sociedade dramaticamente desigual, caracterizada por uma minoria de proprietários de terras e suas famílias, que buscavam constantemente se afirmar sobre uma maioria composta por pessoas carentes econômica e socialmente (Prado Jr. 2011, 132).
A abolição da escravatura veio em 1888, como consequência do medo das revoltas e fugas dos negros ocorridas naquela época e de uma mudança de valores trazida pelo processo de industrialização. Essa mudança foi mais em relação ao fim da monarquia, início da República e trabalho livre para uma emergente classe média burguesa, formada por brancos locais e imigrantes, do que pela valorização da vida dos escravos negros. Assim, faltavam outras iniciativas que pudessem mudar a condição dos ex-escravos: eles continuavam sem preparação para fazer outro trabalho, e agora tinham que cuidar da própria subsistência, disputando empregos ou com a maquinaria, ou com essa classe média que tinha acesso à educação formal e estava mais acostumada ao trabalho numa sociedade burguesa. Não é surpreendente que muitos ex-escravos continuaram a trabalhar nos mesmos lugares, por salários muito baixos, ou migraram para as favelas nos centros urbanos (Fausto 2002, 121138; Furtado 1987, 138; Souza 2017, 76-77).
O quadro atual mostra que a falta de ações diretas para mudar a situação estrutural, apesar da abolição da escravatura, deixou um legado negativo de desigualdade social que perdura por quase um século e meio. A cultura e as leis existentes simplesmente mantinham um processo homeostático na sociedade que resistia às mudanças, pois isso era do interesse do status-quo, ou simplesmente porque, tendo vivido em uma sociedade que sempre foi assim, as pessoas ficam cegas a essas desigualdades. Assim como aconteceu comigo: essa cegueira foi o que me fez ir até o final do ensino médio sem realmente questionar por que eu tinha apenas uma colega negra.
A fotografia atual
Cento e trinta e dois anos após a abolição da escravatura, o Brasil ainda é o país mais desigual do planeta, segundo o índice GINI. Não é que tenhamos alcançado esse status apenas agora, somos consistentemente top 3 nos 37 anos de existência do índice, sendo o número um 17 vezes (Banco Mundial 2020). As exceções onde ficamos fora do top 3 foi o período de 2005 a 2010. Coincidência ou não, foi quando o Bolsa Família, um renomado programa de bem-estar, estava em seus primeiros anos e desemprego no Brasil alcançava a sua menor taxa histórica (Tepperman 2016).
Alguns números ilustram essa desigualdade com mais detalhes. Por exemplo, o desemprego da população negra no Brasil é 48% maior do que o da população branca. Considerando apenas as pessoas ocupadas, a renda média da população negra é 42% menor quando comparada à dos brancos. Além disso, os lares de pessoas brancas têm em média praticamente o dobro da renda per capita. É evidente que a população negra ainda luta para acompanhar o nível de renda das classes média e alta.
A educação formal teve uma importância significativa por ser capaz de garantir um status social mais elevado, especialmente no início da industrialização do Brasil no final do século XVIII e início do século XIX. Sem acesso a ela, os então escravos recém-libertados não tiveram chance de se colocar em posição privilegiada na sociedade (Souza 2017, 77). Há muito a melhorar no acesso à educação da população negra. Pessoas brancas têm maior probabilidade de terminar o ensino médio e ingressar no ensino superior. Existe ligação entre (a falta de) educação formal e reclusão: a maioria da população penitenciária no Brasil não concluiu o ensino médio, e não é por acaso que quase duas em cada três pessoas privadas de liberdade no país são negras.
Isso reforça o ponto de Souza (2017, 175-6) de que as desigualdades econômicas e, principalmente, a miséria, são as principais causas de conflito na sociedade brasileira. Existe um viés nas situações de conflito na sociedade: reclusão de negros, baixa renda, violência contra alta renda (geralmente brancos). Deixar que esse problema se resolva ao acaso desde as origens do Brasil não melhorou a situação. É imprescindível que se façam ações deliberadas para transformar essa realidade.
Ações afirmativas para reparações históricas
As ações afirmativas têm como objetivo transformar a discriminação estrutural. Visam induzir transformações culturais, pedagógicas e psicológicas, a fim de retirar do imaginário coletivo a ideia de supremacia racial ou de gênero, que tende a se perpetuar ao longo do tempo se nada for feito (Gomes 2001, 67). Elas agem como um reajuste de parâmetros, fazendo com que o processo homeostático da sociedade trabalhe para encontrar um novo equilíbrio dinâmico.
Um exemplo de ação afirmativa é o mecanismo de cotas para facilitar o acesso de estudantes negros às universidades. No Brasil, foi adotado pela primeira vez nas universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro em 2003 (Domingues 2005, 168). Os resultados de 2018 mostram um aumento de 359% da taxa de população negra que concluiu o curso de graduação em relação ao ano de 2000 (ver Tabela 4). Em termos de desempenho acadêmico, Guarnieri e Melo-Silva (2017, 189) mostram que não há diferença significativa entre cotistas e não cotistas, enquanto o índice de evasão é menor nos cotistas. Esses resultados mostram que o sistema de cotas está tendo sucesso nas universidades públicas do Brasil. É um bom exemplo de como as soluções normativas podem apoiar a luta contra a desigualdade e ser uma ferramenta importante para a transformação de conflitos.
É imprescindível que haja ações afirmativas para transformar a situação. Os usos e o costumes significaram escravidão para os negros por quase quatrocentos anos no Brasil. A abolição da escravatura não teve um efeito mágico para mudar os costumes: os ex-escravos continuaram a ser marginalizados, tanto na percepção do resto da população quanto nas instituições formais do Estado. Deixar o problema ao acaso fez com que o processo homeostático da sociedade mantivesse um suposto equilíbrio de uma estrutura de poder desequilibrada.
Mudanças de valores ocorreram, mas a desigualdade estrutural está tão consolidada para resistir às mudanças, que o processo de trazer oportunidades iguais para todos é muito lento, se é que isso vai acontecer algum dia. Para mim, está claro agora que devem haver ações deliberadas para transformar a situação, mudar os parâmetros para novos valores, para que a sociedade chegue a um novo equilíbrio que aborde a principal causa raiz do conflito: a desigualdade.
Ações afirmativas podem fazer com que pessoas privilegiadas como eu se sintam desconfortáveis, e isso é positivo, é o primeiro passo para entender que algo está desequilibrado. O problema estava dentro de mim: eu não conseguia entender muito bem as causas do desequilíbrio na sociedade. Minha amiga estava certa em pedir apenas currículos de negros. Convido a todos a tomar consciência de que quando esses incômodos acontecem, é sinal de que pode haver algo a ser compreendido mais profundamente, ao invés de achar que tudo tem que ficar como está só porque “as coisas sempre foram assim”.
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